“A Anestesiologia é uma área em constante atualização”

23/02/23
“A Anestesiologia é uma área em constante atualização”

“A anestesia evoluiu muito não só em termos de monitorização, mas também ao nível dos fármacos e técnicas utilizadas procurando adaptar-se cada vez mais ao doente e ao procedimento.” Quem o afirma é a Dr.ª Cristina Pestana, coordenadora de Anestesiologia no Hospital CUF Descobertas. No próximo dia 11 de março, vai decorrer a Reunião de Anestesiologia CUF e acrescenta que “não chega tratar a dor, é necessário fazê-lo de uma forma consistente, organizada, de acordo com protocolos estabelecidos e revistos regularmente.”

News Farma (NF) | Enquanto Coordenadora de Anestesiologia no Hospital CUF Descobertas e envolvida no programa da Reunião de Anestesiologia CUF, como caracteriza a motivação e atitude da equipa de Anestesiologia. Como estas características moldaram o programa concebido? 

Dr.ª Cristina Pestana (CP) | Tenho o privilégio de coordenar uma equipa de 17 médicos anestesiologistas extraordinariamente competente e motivada - alguns dos profissionais integram a comissão organizadora do evento, mas toda a equipa participará na reunião porque acreditamos que a formação e a discussão científica são pedras basilares de qualquer serviço hospitalar que se preocupe com a qualidade. No Hospital CUF Descobertas, temos um projeto clínico que engloba diferentes áreas da Anestesiologia, o que possibilitou que os temas escolhidos para a reunião estejam relacionados com diferentes áreas do projeto clínico do serviço. São temas relevantes e atuais no âmbito da Anestesiologia, da Medicina e do mundo, como por exemplo o “Patient blood management”, a avaliação pré-operatória e os PROMs e PREMs (patient reported outcomes e patient reported experiences).

NF | Com menos visibilidade pública, mas elemento vital nas equipas médicas, em que direções tem evoluído esta especialidade? Onde se tem investido em investigação?

CP | A Anestesiologia é uma especialidade transversal num hospital. Anestesiamos para diferentes especialidades cirúrgicas e médicas com objetivos diagnósticos e/ou terapêuticos, dentro e fora do bloco; os doentes anestesiados também pertencem a todos os grupos etários e têm diferentes patologias associadas.

A qualidade anestésica reflete-se, por isso, na qualidade global do hospital e daí que muitos dos parâmetros usados para avaliar a qualidade hospitalar sejam parâmetros de qualidade anestésica. Além disso, os médicos anestesiologistas são os que têm melhores skills para abordar determinadas situações críticas como a via aérea difícil, a hemorragia aguda e a catástrofe.

Seremos, fazendo paralelismo com o teatro, “(...)o que está por detrás do pano”. Não bastam os atores principais (neste caso, o cirurgião); são necessários o dramaturgo, o técnico de som e de luz, quem faz o guarda-roupa, o encenador, entre outros; não somos os atores principais, mas somos determinantes.

A Anestesiologia é uma área em constante atualização. Destaco, por exemplo, a investigação em Anestesiologia que se está a fazer na área da farmacologia e dos devices para infusão, estratégias de monitorização (débitos cardíacos, oximetrias regionais, monitorização cerebral), bem como estratégias para evitar disfunções cognitivas pós-operatórias entre outras.

NF | O programa do evento foca a discussão sobre a pegada ecológica dos cuidados de saúde, onde por exemplo o bloco operatório é responsável por cerca de 20-30 % dos resíduos hospitalares. Na sua opinião, que medidas podem os cuidados de saúde, em particular o serviço de Anestesiologia, para transformar os cuidados de saúde numa área mais sustentável?

CP | Estudos indicam que um doente internado produz cerca de 7 kg de lixo por dia e o bloco operatório é responsável pela produção de cerca de 2 ⁄ 3 do lixo hospitalar. Por outro lado, sabe-se que os gases anestésicos são responsáveis por cerca de 15 a 20 % da pegada de carbono. Meia hora de anestesia com desflurano equivale a 4 horas da produção de CO2 por um carro não elétrico. Por outro lado, nem todo o lixo hospitalar é não reciclável: bem pelo contrário, cerca de 90 % do lixo hospitalar é reciclável e, por isso, não tem de ser incinerado. Sendo que a incineração também aumenta a pegada de carbono. Daí que atitudes como a redução do uso de halogenados, a suspensão dos halogenados que, não tendo vantagens clínicas, têm maior pegada ecológica, a adoção de medidas como retirar a obrigatoriedade de existir protóxido de azoto no bloco que não tem qualquer vantagem clínica, a adequada separação dos lixos hospitalares e reciclagem dos que são passíveis de o ser, são medidas de sustentabilidade.

Através das mudanças climáticas, da perda da biodiversidade e da poluição, os humanos estão a destruir a Terra, tornando-a um planeta cada vez mais inabitável, e não são só as outras espécies que ficam em risco. É, portanto, urgente que todos - incluindo profissionais de saúde de Anestesiologia, tenhamos consciência e tomem atitudes para preservar o planeta para os nossos filhos e netos.

NF | As intervenções peri-operatórias, especialmente anestesia regional, durante a cirurgia do cancro podem alterar o resultado oncológico aumentando a sobrevivência livre de doenças. Esta descoberta levou ao nascimento da nova subespecialidade chamada onco-anestesia. Neste contexto, qual considera ser o impacto da anestesia total intravenosa (TIVA) na necessidade de opiáceos e agentes anestésicos voláteis implicados na recidiva do cancro?

CP | A Anestesiologia passou de uma especialidade meramente facilitadora do ato cirúrgico, a uma especialidade que garante a homeostasia perturbada pela agressão cirúrgica, a que se acrescenta, hoje em dia, o papel de condicionante do prognóstico.

Hoje sabe-se que as técnicas anestésicas condicionam o prognóstico da doença oncológica. Também se sabe que a fluidoterapia e os fármacos utilizados podem condicionar a qualidade e velocidade da recuperação do doente. Os halogenados estão referidos em muitos estudos como favorecendo a recorrência ou pelo menos não a limitando. Técnicas loco regionais e técnicas de anestesia geral opioid free e opioid sparing, com analgesia epidural torácica e endovenosas totais TIVA e TCI (total intravenous anesthesia ou target controlled infusion) diminuem a recorrência tumoral e a metastização à distância de muitos tumores, nomeadamente do cólon.

NF | Um dos momentos de discussão previstos no evento aborda a criação de Unidades de Dor Aguda nos hospitais privados. Que nova realidade é esta? 

CP | A dor é considerada o 5.º parâmetro vital e a existência de Unidades de Dor Aguda estão preconizadas pela Direção-Geral da Saúde.

A dor tem consequências não só psíquicas como também físicas, hemodinâmicas, como sejam o aumento da frequência cardíaca, da tensão arterial e, em consequência, do consumo de oxigénio com aumento da morbimortalidade, além da experiência negativa; é também importante referir que uma dor aguda não tratada pode evoluir para a cronicidade.

Não chega tratar a dor, é necessário fazê-lo de uma forma consistente, organizada, de acordo com protocolos estabelecidos e revistos regularmente, registar sistematicamente e auditar.

É um orgulho termos organizado no Hospital CUF Descobertas a Unidade de Dor Aguda, que conta com quatro médicos e dois enfermeiros dedicados, além dos enfermeiros de ligação e do farmacêutico de ligação, funcionará no modelo nurse based com guidelines que indicarão quando o médico deve intervir. Numa primeira fase, iremos avaliar e tratar a dor aguda dos doentes cirúrgicos e rapidamente tratar a dor de todos os doentes internados. Esta nova realidade permite-nos ser um hospital sem dor, contribuindo assim para o bem-estar dos doentes e a minimização da experiência negativa relacionada com a doença e com o internamento.

NF | A investigação mostra que o perfil genético afeta a intensidade do alívio da dor percebido em resposta a anestésicos e analgésicos. No futuro, poderá ser possível que a gestão da dor e a anestesia sejam personalizadas em função do perfil genético para maximizar a satisfação do doente? 

CP | A anestesia evoluiu muito não só em termos de monitorização, mas também ao nível dos fármacos e técnicas utilizadas procurando adaptar-se cada vez mais ao doente e ao procedimento. Se, por um lado, precisamos de guidelines e regras para aumentar a segurança, também precisaremos cada vez mais de saber o comportamento de cada um perante cada situação. Evoluiremos para uma anestesia cada vez mais taylormade através do conhecimento da genética de cada um, que altera a resposta às situações e aos fármacos.

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