News Farma (NF) | Qual o balanço que faz do evento Health Insights?
Enf.ª Isabel Ferreira (IF) | Esta 6.ª edição do Health Insights contou com cerca de 600 profissionais de saúde inscritos e incidiu sobre a promoção da saúde da mulher relacionada com a fertilidade, a gravidez e o parto, assim como a promoção da saúde do feto e do recém-nascido durante a gravidez, o nascimento e os primeiros meses pós-parto, com principal ênfase no período de amamentação e sob uma perspetiva psicológica, neurológica, endocrinológica, imunológica e um modelo salutogénico e humanizado.
Este momento de atualização científica, promovido pela Crioestaminal, com a colaboração do projeto Sementes & Laços, destina-se a profissionais de saúde das áreas de Obstetrícia, Ginecologia e Pediatria e pretende expandir o conhecimento sobre a assistência das mulheres na transição para a maternidade. Além de estratégias e competências que visam a promoção da saúde da mulher durante a idade fértil, gravidez, parto e amamentação, foram discutidos vários temas sobre a atuação dos enfermeiros parteiros em Portugal, desde a autonomia dos EESMO na legislação portuguesa, em comparação com a realidade europeia, à proposta da implementação de uma unidade de cuidados de maternidade em Portugal seguindo o modelo Midwifery Model of Care.
O encontro contou ainda com a participação especial da Dr.ª Frances Verter, fundadora do Parent’s Guide to Cord Blood e cofundadora da CellTrials.org, que forneceu dados completos e precisos sobre os ensaios clínicos realizados na área das terapias celulares avançadas, para abordar o tema “The Status of Cord Blood Banking”.
NF | Como define o atual papel dos enfermeiros especialistas em Saúde Materna e Obstétrica (EESMO) nos cuidados à mulher grávida e ao recém-nascido?
IF | De acordo com a subsecção VI da Lei n.º 31/2021 de 24 de maio de 2021, que regula as profissões em Portugal, as parteiras com certificação para trabalhar em Portugal, os Enfermeiros Especialistas em Saúde Materna e Obstétrica (EESMO) estão habilitados para, pelo menos, exercer as seguintes atividades (ponto 2 do artigo 39º):
a) Informar e aconselhar corretamente em matéria de planeamento familiar;
b) Diagnosticar a gravidez, vigiar a gravidez normal e efetuar os exames necessários à vigilância da evolução da gravidez normal;
c) Prescrever ou aconselhar os exames necessários ao diagnóstico mais precoce possível da gravidez de risco;
d) Estabelecer programas de preparação para a paternidade e de preparação completa para o parto, incluindo o aconselhamento em matéria de higiene e de alimentação;
e) Assistir a parturiente durante o trabalho de parto e vigiar o estado do feto in utero pelos meios clínicos e técnicos apropriados;
f) Fazer o parto normal em caso de apresentação de cabeça, incluindo, se necessário, a episiotomia, e o parto em caso de apresentação pélvica, em situação de urgência;
g) Detetar na mãe ou no filho sinais reveladores de anomalias que exijam a intervenção do médico e auxiliar este em caso de intervenção, tomar as medidas de urgência que se imponham na ausência do médico, designadamente a extração manual da placenta, eventualmente seguida de revisão uterina manual;
h) Examinar e assistir o recém-nascido, tomar todas as iniciativas que se imponham em caso de necessidade e praticar, se for caso disso, a reanimação imediata;
i) Cuidar da parturiente, vigiar o puerpério e dar todos os conselhos necessários para tratar do recém-nascido, assegurando-lhe as melhores condições de evolução;
j) Executar os tratamentos prescritos pelo médico;
l) Redigir os relatórios necessários.
Na prática, estes profissionais de saúde não têm tido em Portugal, na maioria dos contextos, suporte para exercer em pleno todas estas suas competências, verificando-se um franco desaproveitamento das mesmas. Isto tem levado a que cada vez mais EESMO saiam “do sistema”, começando a trabalhar como profissionais liberais, fora do contexto do Serviço Nacional de Saúde, ou até mesmo emigrando. Há neste momento muita procura no estrangeiro por EESMO portugueses, reconhecendo-lhes um alto nível de formação profissional, com vários países a oferecer aos EESMO cargos e condições de trabalho apelativos.
NF | Um dos temas centrais de discussão no Health Insights foi a autonomia dos EESMO na legislação portuguesa, em comparação com a realidade europeia. Quando traçado este paralelismo, como se posiciona Portugal atualmente neste contexto?
IF | Apesar dos EESMO em Portugal terem competências equivalentes às restantes parteiras da Europa, não têm tido oportunidade, na maioria dos contextos, para exercer essas competências com plena autonomia.
Um exemplo disso é o atual acompanhamento das grávidas com baixo risco de complicações que, no Serviço Nacional de Saúde português, deixaram de ter o privilégio de serem acompanhadas por profissionais de saúde especializados (as parteiras/EESMO), tendo apenas como opção o acompanhamento por equipas de saúde familiar, não especializadas em saúde materna e obstétrica (médico de medicina geral e familiar e enfermeira de família). Também no contexto intraparto há uma limitação da atuação dos EESMO em Portugal, em comparação com outros países europeus.
A evidência científica é clara: os Midwifery Led Care Models (modelos de cuidados liderados por parteiras/EESMO) têm comprovados benefícios quando comparados com outros modelos de cuidados, nomeadamente: na gravidez - menor probabilidade de morte fetal antes e após as 24 semanas e menor probabilidade de parto pré-termo (antes das 37sem); no parto – menor probabilidade de amniotomia, episiotomia, partos instrumentados e pedido por analgesia epidural; após o parto – maior probabilidade de início da amamentação, maior satisfação pela experiência de parto. Tudo isto com resultados perinatais semelhantes (mortalidade e grandes morbilidades maternas e neonatais).
NF | Os cuidados à mulher grávida e ao recém-nascido têm sido um setor da Saúde ferido por alguma controvérsia recente. O que é necessário para que esta controvérsia se dissolva, e seja possível aprimorar os serviços prestados à comunidade?
IF | Assistimos hoje, em Portugal, a uma necessidade emergente de abordagens mais holísticas dos cuidados na maternidade. Além de cuidados seguros, a população procura cuidados que promovam uma experiência saudável e positiva, maior satisfação com o parto e cuidados respeitosos e promotores da autonomia da mulher. Tendo sempre por base equidade de acesso, sustentabilidade e direito à escolha e modelos de cuidados salutogénicos, humanizados e com uma visão integrativa.
Comparando com outros países de alto rendimento e sistema de saúde universal, tais como Islândia, Irlanda, Dinamarca, Noruega, Espanha, Itália, Reino Unido, Finlândia, Suécia, Grécia, Austrália e Nova Zelândia, o nosso país está bem posicionado em termos de mortalidade neonatal, ocupando uma posição central. No entanto, por outro lado, tem, infelizmente, liderado o topo da tabela de mortalidade materna, com um aumento crescente nos últimos anos. Além disso, Portugal tem ainda uma taxa muito baixa de partos normais, com metade dos partos/nascimentos instrumentalizados por fórceps, ventosa ou cesariana. A Organização Mundial de Saúde, com base nos estudos realizados, afirma que taxas de cesariana superiores a 15-20%, não só não parecem justificar-se para baixar a mortalidade materno-fetal, como poderão contribuir para o aumento de resultados adversos.
É, portanto, urgente em Portugal a implementação de soluções que permitam aumentar a taxa de partos eutócicos e de experiências positivas de parto, assegurando uma melhor gestão de recursos, assim como a equidade e a qualidade dos cuidados.
NF | Outro tema que marcou a reunião foi a promoção da saúde da mulher durante a idade fértil, gravidez, parto e amamentação. Apesar da extensa informação disponível, nos dias de hoje, qual continua a ser o principal desafio no desenvolvimento da literacia, e que relevo têm os enfermeiros especialistas neste campo?
IF | Os desafios são múltiplos, desde o destronar de mitos que persistem entre as mulheres, a sociedade e, até mesmo, no seio dos próprios profissionais de saúde, passando pela falta de recursos humanos que permitam uma assistência personalizada e “sem pressas” da mulher e do recém-nascido, até à necessidade de empoderamento da mulher para se auto-descobrir, sem pudor, empoderamento esse que deveria começar ainda em criança.
NF | Foi proposta a implementação de uma unidade de cuidados de maternidade em Portugal seguindo o modelo Midwifery Model of Care. Como se define este modelo, e qual a importância de podermos vir a replicá-lo em Portugal?
IF | A Associação Portuguesa dos Enfermeiros Obstetras (APEO), com a colaboração do grupo de investigadores “Nascer em Portugal – Pelo Direito à Escolha”, apresentou em 2022 uma proposta ao Governo e à Assembleia da República para a implementação de um projeto piloto de criação de Unidades de Cuidados na Maternidade (UCM) no contexto do Serviço Nacional de Saúde em Portugal, de acordo com o modelo Midwifery Led Care.
A implementação de Midwifery Led Units | Unidades de Cuidados na Maternidade (UCM) é antecipada como uma solução para:
1. Aumentar a satisfação das mulheres com a experiência de gravidez e parto, garantindo cuidados respeitosos e a promoção da sua autonomia e tomada de decisão;
2. Promover a fisiologia na gravidez, parto e pós-parto, evitando a medicalização e aumentando a taxa de partos normais;
3. Melhorar os cuidados de saúde materno-fetais de grávidas com baixo risco de complicações, com a criação de espaços não medicalizados que garantem a segurança e uma abordagem biopsicossocial, centrada na mulher/família;
4. Contribuir para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, através de uma gestão racional dos recursos humanos.
Mulheres de Espanha, Suécia, Islândia, Noruega, Itália, Dinamarca, Nova Zelândia, Reino Unido, Austrália e Irlanda podem escolher ser acompanhadas na gravidez e no parto em UCM, por EESMO/parteiras, pelo serviço nacional de saúde. Só Portugal, Finlândia e a Grécia ficam de fora, neste contexto dos países de alto rendimento com sistema de saúde universal.
Uma Unidade de Cuidados na Maternidade (UCM) é um local onde as mulheres/casais são o centro dos cuidados, com um modelo de continuidade de cuidados e de cuidador, onde o EESMO/parteira assume a responsabilidade pela prestação de cuidados. Estas unidades não são novidade e a sua abertura intensificou-se nas últimas duas décadas à luz da melhor e mais recente evidência, que demonstrou a sua segurança, custo-efetividade, benefícios para a mãe e o bebé e também a satisfação com o atendimento recebido.