É urgente criar condições para seguimento de doentes com transplante fora dos grandes centros, alerta SPT

20/07/22
É urgente criar condições para seguimento de doentes com transplante fora dos grandes centros, alerta SPT

No âmbito do Dia do Transplante, celebrado hoje, 20 de julho, a News Farma entrevistou a Dr.ª Cristina Jorge, presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT), para abordar o panorama atual da transplantação em Portugal e perspetivar o futuro da área, identificando as diretrizes que devem ser seguidas para uma melhor resposta.

Segundo os dados oficiais do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), no final do ano de 2021, Portugal ocupou o 5.º lugar mundial na taxa de dadores falecidos por milhão de habitantes. A Dr.ª Cristina Jorge reconhece esta conquista, salientando que “ainda não se atingiram os números de 2019, mas ainda assim a atividade da colheita e da transplantação em 2021 foi significativa. Isto, apesar de alguma acalmia das condições pandémicas, que permitiram um aumento do número de dadores em relação a 2020, mas que não igualaram nem superaram o período pré-pandémico no total do território nacional. Um dos motivos deve-se ao facto de muitas unidades de cuidados intensivos deixarem de ter possibilidade de fazer colheitas por terem sido transformadas em unidades COVID-19. Sendo que os possíveis dadores com infeção por SARS-CoV-2 não são considerados para doação pelo que isso resultou num decréscimo da transplantação.

Atualmente, o controlo da atividade pandémica já permite que os números aumentem durante este ano. Perspetiva-se no futuro a colheita em pessoas em paragem cardiocirculatória controlada, à semelhança do que já ocorre em vários países, mas que atualmente ainda não são considerados como dadores em Portugal. O transplante de dador vivo deve ser incentivado, podendo vir a aumentar. O modelo de colheitas está bem organizado, mas há espaço para melhorar o seu número, visto que ainda há hospitais em que a capacidade da doação e colheita de órgãos de cadáver não está maximizada.

Em relação aos diferentes tipos de transplante, a médica explica que “há órgãos cuja função não pode ser substituída e por isso são fundamentais à vida. No caso de falência destes órgãos, se a pessoa não for submetida a transplante, não tem possibilidade de sobreviver como é o caso do coração, do fígado e do pulmão”, alerta a presidente da SPT, acrescentando que “estes casos não têm um substituto real para a manutenção de vida do candidato a transplante”, ao invés do caso do transplante renal, uma vez que a pessoa pode ser submetida a diálise, mantendo uma qualidade de vida razoável. O tempo de espera permitido para o transplante difere consoante o tipo de transplante e as condições do doente. No transplante renal de dador falecido, “o tempo de espera médio em Portugal é de aproximadamente cinco anos.”

No que se refere à lei n.º 12/93, que inclui o Artigo 10.º sobre os dadores presumíveis, indicando que todos nos tornamos potenciais dadores após falecimento, exceto se registarmos o desejo de não o ser, “teve um impacto fundamental para a expansão da doação em Portugal.” A Dr.ª Cristina Jorge explica que, “quando um falecido é sinalizado como potencial doador, verifica-se se está registado no Registo Nacional de Não Dadores (RENNDA), e não estando, há uma via aberta para a possível colheita de órgãos.”

Relativamente ao transplante de rim, a Dr.ª Cristina Jorge nota que “os dadores vivos constituem aproximadamente 10 % do total de transplantes que são feitos em Portugal, sendo que 90 % são de dadores falecidos. Como ainda há muitas pessoas à espera de um transplante de rim, prevê-se que possa existir um aumento da doação em vida. Em alguns países, a doação em vida constitui grande parte das colheitas. Portugal está bem organizado na colheita de cadáver, por esse motivo não é expectável um grande crescimento de dadores vivos, mas ainda há espaço para crescer, nomeadamente em casos de pessoas próximas do doente que têm possibilidades para ser consideradas como doadores.” A presidente da SPT sublinha que “os transplantes de órgãos sólidos assegurados em Portugal são o renal, de fígado, de coração, de pulmão e de pâncreas.”

“Os dadores vivos de rim podem obter informações junto das unidades de transplantação, sendo esse considerado o local mais indicado”, refere a Dr.ª Cristina Jorge. “No geral, os Serviços de Nefrologia também estão capacitados para dar a informação necessária.”

Questionada sobre as possíveis melhorias no processo de transplantação em Portugal, a presidente da SPT sublinha que, “em muitos dos hospitais onde há possibilidade de haver colheita de dadores falecidos, mesmo pondo de parte a situação pandémica, existe capacidade para aumentar as doações.” Para isso, a especialista afirma que “é fundamental que os profissionais de saúde estejam informados sobre os processos da doação e da transplantação, para que em situações de falecimento de um doente, este possa ser considerado como um potencial dador.”

“É importante ter em mente que mesmo quando não há a possibilidade de salvar determinado doente, esse doente pode ainda salvar várias vidas com a doação de órgãos. Quem está a trabalhar no terreno, deve ter a consciência e o altruísmo para trabalhar nesse sentido. Se os profissionais de saúde não estiverem programados para esta situação, a doação pode não ser efetivada”, salienta.

Relativamente ao processo de imunossupressão, a Dr.ª Cristina Jorge esclarece que, “para o transplante ser bem recebido, o recetor tem de aceitar o órgão que lhe é colocado. A medicação imunossupressora é receitada para diminuir a atividade do sistema imunológico do recetor de forma a aceitar o novo órgão”. Na maioria dos casos, a medicação é vitalícia, porque se retirada pode resultar na rejeição, principalmente em órgãos sólidos.

Por vezes ocorrem casos de tolerância imunológica, que são mais frequentes no caso do transplante de fígado em comparação com outros órgãos sólidos, em que o doente acaba por aceitar o órgão, não sendo necessária a imunossupressão. Quando se trata por exemplo de um transplante renal, cardíaco, de pulmão ou de pâncreas, “a pessoa tem de fazer sempre imunossupressão para aceitar o órgão”, explica. No transplante de fígado, habitualmente a imunossupressão é em menor intensidade do que nos órgãos acima mencionados, mas no geral também é para sempre.

Relativamente ao transplante de medula, normalmente a imunossupressão não é necessária para toda a vida e, na maioria dos casos, é assim possível reduzir ou parar a medicação.

No entanto, “na maioria dos órgãos transplantados, a imunossupressão deve ser necessária para toda a vida e o doente tem de ter essa disciplina de forma a evitar a rejeição do órgão. As rejeições podem ser agudas resultando numa disfunção rápida do órgão, ou crónicas, evoluindo lentamente ao longo do tempo, mas causando deterioração progressiva do órgão. Neste caso, as rejeições podem dar poucos sinais, começando de uma forma insidiosa e se o doente não toma a medicação de forma correta, controlada e disciplinada, ao longo do tempo, estas falhas podem estimular pontualmente o sistema imunológico e resultar numa rejeição indolente que vai evoluindo de uma forma lenta até sem grandes manifestações, mas quando diagnosticada, o órgão pode já estar muito deteriorado”, alerta a médica.

Assim, a imunossupressão é muito importante para o controlo destas situações. O acompanhamento após o transplante deve ser próximo e continuado para toda a vida, esclarece. Já no caso do transplante renal, o doente pode ter de voltar para a diálise, porque os rins podem perder a sua função. “Este acompanhamento é fundamental para que o doente se sinta seguro e caso haja alguma ocorrência, para assegurar que o doente seja tratado”, salienta a médica.

A Dr.ª Cristina Jorge alerta para a necessidade de criar condições para seguimento de doentes transplantados, para além do local onde os doentes foram submetidos ao transplante. Para isso será necessário alocar recursos técnicos, assim como profissionais de saúde, motivados e disponíveis para esta tarefa, para melhorar a produtividade da transplantação. “As unidades de transplante estão muito assoberbadas porque acompanham cada vez mais doentes transplantados, mas os recursos humanos e técnicos à disposição das unidades não têm aumentado da mesma forma que o número de doentes”, sustenta.

“É importante pensar no futuro para conseguir descentralizar o seguimento destes doentes. Isto pode trazer vantagens quer aos doentes, que passam a ser avaliados mais próximos da sua área de residência, quer aos profissionais de saúde que trabalham noutros hospitais que não têm transplantação, mas que podem passar a ter contacto com esta realidade, tornando-se mais autónomos a tratar estes doentes.”

Outro tema de grande importância é a sensibilização junto da população. Nesse sentido, a presidente da SPT declara que, “se a população não estiver sensibilizada para este problema, também não colabora na sua resolução. A transplantação salva vidas e contribui para melhorar a qualidade de vida dos doentes, por isso é uma mais-valia para a sociedade. Esta consciência deve fazer parte de todos. É importante haver conhecimento sobre esta área precocemente.” A Dr.ª Cristina Jorge sugere um exemplo: “nas escolas podem transmitir-se determinados valores como a importância de contribuirmos para o bem comum associado à necessidade da transplantação, essencial para estes doentes. O conhecimento da população nesta área pode aumentar o número de transplantações e de dadores, tanto falecidos como vivos, porque uma população informada certamente colabora mais nesta matéria.”

Relativamente ao Dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação, a presidente da SPT anuncia que estão a “programar com o IPST uma comemoração que este ano abordará o tema da sustentabilidade da doação e da transplantação.” Já é habitual a sociedade científica organizar um evento dedicado ao dia, sendo que, “desta vez, não será possível o convívio com os doentes devido à atividade pandémica, mas a data vai ser comemorada procurando envolver os profissionais destas unidades com os seus testemunhos nesta área.”

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