A deficiência de ferro é muito prevalente e ocorre em 43% da população mundial. É considerada a deficiência de micronutrientes mais frequente. Esta situação apresenta especial importância em situações de aumento das necessidades como são o crescimento, as perdas menstruais em mulheres em idade fértil e a gravidez[1,2].
Estima-se que a prevalência de anemia na população portuguesa seja de aproximadamente 20,6% correspondendo em mais de metade dos casos (52,7%) a anemia ferropénica[3].
O ferro é um mineral que se encontra na alimentação em duas formas. O ferro heme que é um derivado de produtos animais como a carne e o peixe e o ferro não heme que é um derivado de produtos vegetais e pode encontrar-se em dois estados de oxidação, como ferro ferroso (Fe2+) ou ferro férrico (Fe3+).
A absorção destas duas formas de ferro difere de forma significativa. A existência do ferro heme foi reconhecida apenas na década de 60 mas os mecanismos de absorção deste ferro ainda não se encontram totalmente esclarecidos[4,5].
A evidência atual demostra que a absorção do ferro se realiza no enterócito do duodeno e jejuno proximal.
O ferro heme é absorvido pela proteína transportadora de ferro heme e quando se encontra no citoplasma do enterócito postula-se que possa seguir por três vias diferentes. Relativamente à primeira via o ferro heme pode passar através da membrana basal pelo recetor relacionado com a proteína 1 do subgrupo C do vírus da leucemia felina, unindo-se posteriormente à hemopexina na circulação periférica. Na segunda via o ferro pode sofrer a ação da heme-oxigenase tipo 1 do retículo endoplasmático e libertar o ferro ferroso. Por último, existe a possibilidade da internalização do ferro em vesículas endoplasmáticas desde o recetor heme localizado à superfície da célula, sofrendo depois a ação de da heme-oxigenase tipo 2 e libertando-se ferro ferroso. O ferro ferroso libertado pelas últimas duas vias, passará através da membrana basal do enterócito através ferroportina após oxidação pela hefastina a ferro férrico, unindo-se na circulação periférica à transferrina. A Transferrina é responsável pelo transporte do ferro para os locais onde este se armazena sob a forma de ferritina e hemossiderina, assim como para os locais onde o ferro é utilizado, nomeadamente a medula óssea, onde o ferro contribui para a síntese de novos eritrócitos.
Por sua vez o ferro não heme sofre ação da enzima citocromo B duodenal que se encontra na membrana apical do enterócito. Esta enzima reduz o ferro, de forma férrica a ferrosa. Posteriormente a esta redução, o ferro entra no enterócito através do recetor divalente de metais tipo 1[4,5].
É importante referir que a absorção do ferro não heme é influenciada pela composição nutricional dos alimentos, o que não acontece com a absorção de ferro heme, sendo este um ferro mais biodisponível[6]. No entanto, o cálcio é o único micronutriente que pode influenciar a absorção de ambos os tipos de ferro[7].
A educação nutricional torna-se, deste modo, fundamental na optimização da absorção do ferro, para estabilização das reservas funcionais, sobretudo na mulher devido às perdas mestruais[7,8].
A regulação da absorção de ferro é realizada pela hepcidina, uma proteína produzida no fígado. A sua produção é exacerbada por estados inflamatórios e em situações de suplementação de ferro e é inibida em situações de hipóxia. Relativamente à suplementação de ferro, a hepcidina pode bloquear a ferroportina da membrana basal do enterócito impedindo a sua absorção, comprometendo ainda mais o tratamento dos estados de deficiência de ferro[2]. No entanto, habitualmente a absorção de ferro adapta-se para responder às necessidades sendo inversamente proporcional à concentração de ferritina[9].
A suplementação oral de ferro é a forma mais frequente de tratamento de situações de deficiência de ferro e de anemia por deficiência de ferro.
Apesar dos sais de ferro continuarem a ser a primeira linha de tratamento, acredita-se que a sua concentração elevada de ferro não heme possa resultar em efeitos secundários importantes, nomeadamente gastrointestinais, que constituem um fator muito importante no abandono desta terapêutica[2,10]. Por este motivo, tem surgido evidência crescente da utilização do ferro heme para o tratamento de situações de deficiência de ferro, demostrando, quer isoladamente quer comparativamente com outras formulações de ferro oral e endovenoso, vantagens na prática clínica.
Segundo as conclusões de Nam et al [11], em indivíduos saudáveis a absorção do ferro heme é mais eficiente que a absorção de sais de ferro. Estudos de Seligman et al [12] corroboraram esta informação, demostrando a melhor biodisponibilidade do polipeptídeo de ferro heme comparativamente ao fumarato ferroso.
No que diz respeito aos estudos realizados na gravidez, Eskeland et al [13] objetivaram a menor redução de reserva de ferro após o parto, na maioria das mulheres, se tivesse sido administrado ferro elementar contendo uma quantidade de ferro heme na segunda metade da gravidez. No que diz respeito à compliance esta foi superior no grupo de mulheres suplementadas com ferro heme.
O grupo de Abdelazim et al [14] compararam a suplementação de ferro heme com sacarato de hidróxido de ferro endovenoso para correção de anemia por deficiência de ferro na gravidez. Após 3 meses de tratamento os valores de ferritina e hemoglobina aumentaram sem diferenças significativas nos dois grupos. Assim sendo, os autores concluíram que o ferro heme oral utilizado (Proferrinâ) foi seguro e bem tolerado aumentando a hemoglina e as reservas de ferro.
Também Suzuki et al [15] evidenciaram que o polipeptídeo de ferro heme oral melhorava a hemoglobina e o hematócrito durante 14 semanas de tratamento em mulheres grávidas, tendo o beneficio sido extensível ao período pós-parto com boa eficácia, segurança e tolerância.
Outros autores como Young et al [16] observaram que a utilização de ferro heme de origem animal é uma fonte altamente disponível nas mulheres grávidas e não grávidas.
Quando comparado com o sulfato ferroso, o ferro heme não se demonstrou tão sensível à concentração de hepcidina e à reserva de ferro.
Elmahaishi et al [17] apontaram melhoria significativa dos parâmetros analíticos com administração de globifer forteâ, tendo sido seguro e bem tolerado na gestão da anemia por deficiência de ferro durante a gravidez.
Mais recentemente, Abdelazim et al [18] avaliaram a eficácia de ferro ligado ao heme (Optiferâ) no tratamento da anemia por deficiência de ferro na gravidez, durante 3 meses e evidenciaram a melhoria da anemia, bem como da reposição da reserva de ferro. Mais tarde Abdelazim et al [19] compararam o ferro ligado ao heme (Optiferâ) com o sacarato de hidróxido de ferro endovenoso (Ferosacâ) e relataram a eficácia e boa tolerância do ferro ligado ao heme em situações de anemia por deficiência de ferro durante a gravidez. Aferiram também que o sacarato de hidróxido de ferro endovenoso deve apenas ser usado se houver necessidade de rápido preenchimento das reservas de ferro.
Existem também vários estudos de vida real que demostrararam a boa tolerância e eficácia do ferro heme no tratamento da anemia por deficiência de ferro em mulheres grávidas e não grávidas [20]. O ferro heme foi considerado uma mais-valia em mulheres não responsivas aos suplementos convencionais de ferro[21].
De acordo com o relatório da Agência Canadiana para as drogas e as tecnologias na saúde de 2016, os produtos de ferro heme são formulações alternativas aos sais de ferro, oferecendo melhor absorção e perfil de tolerância.
Em doentes com doença renal crónica não dialisados Nagaraju et al [23] provaram que o polipeptídeo de ferro heme foi eficaz, quando comparado com a suplementação de sacarato de hidróxido de ferro endovenoso, na manutenção dos valores de hemoglobina dos pacientes, ao longo de 6 meses, sem diferenças nos efeitos adversos. Nos doentes dialisados, Nissenson et al [24] validaram que o polipeptídeo de ferro poderia ser um suplemento adequado, pois é absorvido mesmo em doente com elevados níveis de ferritina, apresentando menos efeitos secundários e sendo a sua absorção estimulada pelo uso de eritropoietina.
O relatório da Agência Canadiana para as drogas e as tecnologias na saúde de 2016, afirmou que o polipeptídeo de ferro heme revelou ter uma eficácia comparável aos suplementos de ferro endovenosos e ao sulfato ferroso oral com efeitos adversos semelhantes para ambos os grupos.
A suplementação de ferro continua a ser uma necessidade na prática clínica diária, mesmo em países desenvolvidos. Esta circunstância deve-se às situações de aumento das necessidades de ferro como a gravidez.
Os suplementos de ferro heme apresentam maior biodisponilidade, provavelmente relacionada com as diferentes vias de absorção do ferro heme comparativamente ao ferro não heme. A sua absorção é menos influenciada pela dieta.
O tratamento com suplementos de ferro heme pode melhorar significativamente a qualidade de vida dos doentes e minorar os efeitos secundários associados a outras terapêuticas de ferro não heme. Os efeitos indesejáveis gastrointestinais das terapêuticas baseadas na suplementação de ferro não heme não são desprezáveis e são responsáveis por uma elevada taxa de descontinuação da terapêutica.
Existe evidência científica recente que reforça os benefícios do ferro heme nas situações de deficiência de ferro e de anemia por deficiência de ferro. Os estudos comparativos podem ser uma mais-valia na toma de decisões clínicas quando temos disponíveis várias armas terapêuticas.
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